Certa vez conheci uma pessoa que, no meio da conversa sobre futebol, me disse: Eu vi Pelé jogar. Logo me senti diante de alguém que havia presenciado uma aparição divina e quis saber mais.
Meu interlocutor, antigo expectador da majestade do futebol, me contou com saudade: Eu era garoto. O Maracanã estava lotado. Pessoas de muitas cidades do Estado do Rio chegavam em peregrinação. Amantes de times diferentes, como meu pai e tio, torcedores de Botafogo e Fluminense, respectivamente. Naquele dia, todos foram ver Pelé.
Os anéis da arquibancada não paravam de receber gente. Ninguém reclamava. Compartilhávamos do mesmo sacrifício: sofrer um pouco para ver o Rei. Eu confesso que ia para ter certeza de que Pelé era de carne e osso. Pois pelo que contavam através do rádio ou das conversas dos adultos, parecia se tratar de uma força sobre-humana.
A expectativa era enorme. De repente palmas e gritos explodiram. Uma vibração impulsiva nas arquibancadas. E da abertura do túnel o time do Santos saiu. Eram negros divinos, faiscando sob o sol e vestindo o impecável uniforme branco. Pobre do adversário, cuja derrota aparecia em seus indisfarçáveis olhares de admiração.
Eu trepava nos ombros de quem quer que fosse para acompanhar Pelé. Sim ele era real. Era forte, habilidoso e destemido. Cabeceava com os olhos abertos, certeiro. Com a bola dominada cortava para a direita, para a esquerda e chutava no momento preciso.
Também me lembro da raiva que sentia de cada marcador que ousava dar uma, duas, três porradas na nossa majestade. Fiquei a ponto de cobrar do meu pai e tio, bem como dos desconhecidos com os quais dividia o espaço de concreto, que invadissem o campo e retirassem de lá, aos pontapés, aquele zagueiro insolente que tinha chutado o tornozelo do Rei.
O Rei era um leão! Não caia. Contudo veio a beira do campo ter o joelho amarrado por uma atadura grossa. Fiquei preocupado. Daí em diante não olhava mais a bola, apenas Pelé. Por isso assisti e chorei quando ele subiu mais que as nossas vozes e cabeceou pro gol. Um gol sagrado!
Eu nunca tinha duvidado de Deus. Mas isso era como uma espessa camada de artificialidade, derramada em mim pela severa disciplina religiosa da minha mãe. Depois daquele dia tive a certeza do poder sublime do sobrenatural se revelando em Pelé pelos gramados. Nunca mais duvidei.
Há povos que têm um Rei. Nós temos o Rei de todos aqueles que amam o futebol, independente de fronteiras geográficas. Nós sempre teremos o divino Pelé. Disse, por fim.
Depois disso ficamos em silêncio. Ele se lembrando, eu imaginando. Ambos emocionados.
Cabo Frio, 27 de dezembro de 2022
(Publicado na Folha dos Lagos em 30/12/2022)
Comments